05/07/2018
Lucas Rocha
Pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) descreveram uma nova espécie de parasito, identificada em uma espécie de gambá que habita a Mata Atlântica do Rio de Janeiro. Por trás do nome escolhido – Trypanosoma janseni – está uma homenagem à carreira da pesquisadora Ana Maria Jansen, chefe do Laboratório de Biologia de Tripanossomatídeos do IOC, que se destaca pelas contribuições científicas no estudo de mamíferos. Os autores da descoberta afirmam que, com esse gesto, é reconhecido “o mérito de uma pesquisadora que esforçou-se de forma persistente e minuciosa para investigar todos os fatores possíveis envolvidos no complexo ciclo de vida do Trypanosoma”, conforme destaca trecho do artigo no qual descrevem a nova espécie, publicado na revista científica ‘Memórias do Instituto Oswaldo Cruz’.
Imagem do parasito Trypanosoma janseni obtida por microscopia eletrônica de varredura colorida artificialmente
A descoberta
Situado no conjunto dos protozoários, o grupo dos tripanossomatídeos reúne uma ampla gama de espécies capazes de parasitar pessoas, insetos e mamíferos. O trabalho de investigação das múltiplas possibilidades de interação entre parasitos e hospedeiros pode ser comparada à montagem de um grande quebra-cabeças. Empenhados neste desafio, pesquisadores do IOC desenvolvem estudos sobre o ciclo de vida dos tripanossomatídeos, que dependem de diferentes hospedeiros o seu desenvolvimento. O estudo que levou à identificação do T. janseni foi realizado no âmbito da Pós-graduação Stricto sensu em Biologia Parasitária do IOC.
As amostras dos espécimes identificados como uma nova espécie foram coletadas em 2012. Os protozoários estavam parasitando o baço e o fígado de gambás (Didelphis aurita) recolhidos durante trabalho de campo em área de Mata Atlântica, no Rio de Janeiro. Segundo o pesquisador André Roque, um dos autores da descoberta, a definição da nova espécie foi feita com base em análises morfológicas e genéticas. “Uma nova espécie pode ser definida por um conjunto de características. Morfologicamente, as formas de T. janseni no estágio de epimastigota se assemelham a outros tripanossomatídeos já conhecidos, exceto pela presença de uma organela de membrana simples observada através de microscopia eletrônica”, explicou o veterinário, que atua no Laboratório de Biologia de Tripanossomatídeos do IOC.
A descoberta é o pontapé inicial para a compreensão do papel da espécie recém-identificada na ecologia dos tripanossomatídeos. Ainda serão necessários estudos complementares para esclarecer características como o ciclo de vida e os impactos que o T. janseni pode oferecer para a saúde pública. A descrição do T. janseni também contou com a participação de Camila Madeira Lopes (Laboratório de Biologia de Tripanossomatídeos), Rubem Menna-Barreto (Laboratório de Biologia Celular), Márcio Galvão Pavan (Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários) e Mirian Cláudia de Souza Pereira (Laboratório de Ultraestrutura Celular).
Os pesquisadores André Roque, Márcio Galvão Pavan, Camila Madeira Lopes, Ana Maria Jansen, Rubem Mena-Barreto e Mirian de Souza Pereira celebraram a descoberta da nova espécie de tripanossomatídeo
Trajetória reconhecida
A carreira científica de Ana Maria Jansen começou na década de 1960, durante a graduação em medicina veterinária pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). “Ainda na faculdade, teve início o meu interesse pela parasitologia, esse campo de estudo da interação entre criaturas tão diferentes. A parasitologia é o estudo de uma vida dentro de outra vida. Entender como esse convívio mútuo se dá era algo absolutamente fascinante”, ressalta Jansen. Após a formatura como médica veterinária, iniciou a trajetória científica como bolsista em atividades de pesquisa junto à Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). Após esse período, fez uma breve pausa na carreira para se dedicar à família.
Na década de 1980, quando o IOC passava por reestruturações lideradas pelo então diretor, José Rodrigues Coura, uma das medidas implementadas foi a captação de talentos para compor o quadro de pesquisadores da instituição. Neste contexto, a cientista Maria Deane, considerada hoje uma das mais renomadas parasitologistas do país, assumiu a chefia do Departamento de Protozoologia. Partiu dela o convite para que Ana Jansen se juntasse ao grupo. “Ela era uma pessoa com muita intuição científica. Ao longo da nossa parceria, eu tive o prazer de participar de uma descoberta única sobre a biologia do Trypanosoma cruzi, parasito causador da doença de Chagas: nosso grupo, liderado por Maria Deane, identificou e descreveu a capacidade que o parasito tem de se esconder nas glândulas de cheiro do gambá”, rememora Ana Jansen. A parceria durou cerca de 15 anos e apenas se encerrou com o falecimento de Maria Deane, em 1995.
A parasitologista do IOC Ana Maria Jansen foi homenageada por suas contribuições ao estudo do ciclo de transmissão dos tripanossomatídeos
Desde então, Ana Jansen assumiu o desafio de chefiar o Laboratório de Biologia de Tripanossomatídeos, onde se dedica à pesquisa em laboratório e em campo. Segundo a cientista, ao longo dos anos, o estudo deste amplo grupo de parasitos foi expandido graças à colaboração de profissionais com diferentes perspectivas e linhas de atuação. “Ampliamos as nossas pesquisas para investigar variadas características desse complexo conjunto de parasitos. Voltamos o olhar para o campo, passamos a estudar a interação dos tripanossomas com outros mamíferos e a investigar a saúde dos animais analisados”, enumera.
Nem tudo foi simples na carreira da cientista. Durante estudos com gambás para a investigação do ciclo de transmissão de parasitos, ela foi envolvida de um processo judicial a partir de uma denúncia infundada – a despeito da finalidade de investigação em saúde pública e dos cuidados de acordo com os preceitos de bem-estar animal. O caso, que correu ao longo de anos, foi arquivado e a pesquisadora foi declarada inocente. O episódio não foi capaz de deter a carreira exitosa da pesquisadora, que publicou mais de 130 artigos científicos e orientou mais de 80 estudantes, da iniciação científica ao pós-doutorado. “A atividade de docência representa uma parte muito importante na minha trajetória. A parceria com os orientandos expande horizontes a partir da troca de conhecimento. Quando você sente que a pessoa que está ao seu lado é um bom parceiro de trapézio, e a ciência funciona mais ou menos assim, a pesquisa só tende a ganhar”, relata a pesquisadora, que atua no corpo docente do Programa de Pós-graduação em Biologia Parasitária do IOC.
Sobre os tripanossomatídeos
Tripanossomas são parasitos obrigatórios capazes de infectar vertebrados. Estão distribuídos em todo o mundo. Em geral, o ciclo de vida desses protozoários alterna entre os hospedeiros vertebrados, como os seres humanos, por exemplo, e uma variedade de hospedeiros invertebrados que atuam como vetores, como os barbeiros, insetos vetores da doença de Chagas. Entre as espécies que representam desafios para a saúde pública e para a economia dos países estão o Trypanosoma cruzi, que é responsável pela doença de Chagas na América do Sul e em outras partes do mundo, e o T. brucei, causador da tripanossomíase africana humana e animal.
No Laboratório de Biologia de Tripanossomatídeos do IOC são realizados estudos sobre aspectos macro e microecológicos que interferem na interação destes parasitos com seus hospedeiros e vetores. A identificação dos elos envolvidos na cadeia de transmissão dos tripanossomas contribui para subsidiar a vigilância epidemiológica e o controle de agravos.
Edição: Raquel Aguiar e Vinicius Ferreira
Imagem de microscopia: Rubem Menna-Barreto
Fotos: Josué Damacena
Arte sobre imagem de microscopia: Jefferson Mendes