02/12/2022
Maíra Menezes
O Programa de Pós-graduação em Biologia Parasitária do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) ultrapassou a marca de mil parasitologistas formados, entre mestres e doutores. O programa faz parte da vocação histórica do IOC no estudo da parasitologia, cuja proposta é associar a tradição de excelência da instituição na área às novas abordagens científicas e tecnológicas.
O marco da milésima defesa coube a Joseneide Viana de Almeida, professor da Universidade Estadual de Roraima (UERR). Seu estudo teve como foco a leishmaniose tegumentar – doença que provoca feridas na pele e, em alguns casos, nas mucosas da boca e do nariz.
Realizada através do programa de Doutorado Interinstitucional (Dinter), estabelecido entre a Pós-Graduação do IOC e a Universidade Federal de Roraima (UFRR), a pesquisa teve orientação de Reginaldo Peçanha Brazil, pesquisador do Laboratório de Doenças Parasitárias do IOC.
Joseneide Viana em trabalho de campo para captura de vetores. Foto: Acervo pessoal
A tese de Almeida apresentou um mapeamento inédito das espécies de parasitos causadores da infecção em Roraima, a partir de um amplo trabalho de campo e de análises genéticas.
“Chegar à defesa de número mil com um aluno do Dinter é uma marca significativa do que o Programa de Pós-graduação em Biologia Parasitária quer ser: um curso nacional de abrangência internacional”, afirmou o coordenador do Programa, André Roque.
Cada uma das pesquisas desenvolvidas no programa é responsável por apresentar informações relevantes para a saúde pública. Com a milésima tese não foi diferente. O estudo revelou a grande diversidade de espécies de Leishmania circulantes em Roraima e encontrou duas variedades do parasito que nunca tinham sido detectadas no Brasil.
A pesquisa contou com um amplo trabalho de campo. Além da capital, Boa Vista, foram coletadas amostras em municípios de diferentes regiões do estado, entre 2016 e 2018. Ao todo, 262 casos suspeitos foram analisados. A infecção foi confirmada em 129 pacientes. Entre estes casos, 76 foram selecionados para o sequenciamento genético dos parasitos.
A análise molecular revelou a circulação de nove espécies de Leishmania. Com transmissão conhecida na região amazônica, as espécies Leishmania (Vianna) braziliensis e Leishmania (Leishmania) amazonensis foram as mais frequentes.
Porém, a identificação do parasito Leishmania (Vianna) panamensis em 13% das amostras surpreendeu os cientistas. Principal causadora da doença no Panamá e na Colômbia, a espécie nunca tinha sido detectada no Brasil.
Outra espécie inédita no país, o parasito Leishmania (Viannia) mexicana foi identificado em um caso, no município de Alto Alegre, no Norte do estado. A espécie é comum principalmente no México.
Mapa indica os locais das coletas de amostras, que foram realizadas em cinco centros de saúde do estado. Imagem do artigo 'Diagnosis and identification of Leishmania species in patients with cutaneous leishmaniasis in the state of Roraima, Brazil's Amazon Region'.
“Rastreamos os casos e os pacientes não tinham viajado, com exceção de alguns indígenas, que são nômades e circulam entre o Brasil e a Venezuela. A maioria dos infectados não tinha saído de Roraima no último ano, o que indica transmissão local”, afirmou Joseneide.
O autor do trabalho destacou ainda a metodologia aplicada, que pode facilitar as análises moleculares em áreas isoladas.
“Testamos uma nova técnica de coleta e envio de amostras, utilizando papel filtro, que permitiu transportar o material biológico mantendo a qualidade para a extração de DNA. É uma metodologia que pode ser usada em investigações sobre outras doenças”, ressaltou.
Considerando os resultados, novos estudos estão em andamento com o objetivo de mapear o ciclo de transmissão dos parasitos L. (V.) panamensis e L. (V.) mexicana em Roraima. Nas áreas onde os casos foram registrados, os pesquisadores já realizaram a coleta de vetores para investigar se os parasitos podem ser detectados nos insetos.
Joseneide destaca que a conclusão do doutorado, propiciada pelo Dinter, trouxe novas oportunidades para desenvolver pesquisas.
“Nossa universidade tem apenas 16 anos de existência, e a formação de doutores é fundamental para avançar na parte da pesquisa. Atualmente, tenho três projetos em curso, com participação de alunos de graduação, que já são inseridos na atividade científica desde o começo da formação”, salienta o professor.
Pós-graduação mais antiga em atividade no IOC, a Biologia Parasitária iniciou a formação de mestres em 1976 e de doutores em 1992. Desde 2013, o curso é avaliado com conceito 7 pela Coordenação de Aperfeiçoamento e de Pessoal de Nível Superior (Capes). A nota máxima, que indica excelência em nível internacional, foi renovada, pela terceira vez consecutiva, em 2022, na avaliação que considerou o período de 2017 a 2020.
“Na pandemia, apesar das dificuldades, conseguimos manter a formação de alta qualidade sem interromper processos seletivos e defesas”, pontuou André, lembrando que o curso implantou o processo de seleção de alunos de forma remota em 2015, para facilitar o ingresso de estudantes de diferentes estados e países.
Aulas e outras atividades remotas permitiram continuidade da formação dos estudantes no contexto da pandemia. Foto: Reprodução
Além do Dinter em Roraima, a pós-graduação já atuou, e ainda atua, em diversas iniciativas para promover a formação de excelência além dos muros de Manguinhos. Nos últimos anos, a Biologia Parasitária formou doutores no Acre e no Amazonas, assim como mestres em Moçambique, na África. As turmas foram estabelecidas por meio de acordos firmados pelo IOC e pela Fiocruz com instituições científicas locais.
Atualmente, está em curso a formação de doutores em Rondônia, por meio de acordo entre o IOC e o escritório técnico da Fiocruz no estado. Uma turma de doutorado interinstitucional em Biologia Parasitária também foi iniciada no Rio Grande do Norte. Criado através da cooperação entre a Pós-graduação do IOC e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o curso é o primeiro a oferecer formação de doutorado na área no estado.
“Quando iniciamos o Dinter em Roraima, havia pouco mais de 30 doutores na UFRR. O projeto aumentou esse número em 25%. A importância dessa iniciativa foi destacada no último relatório de avaliação da Capes”, diz André.
“Depois de formados, os doutores têm maior facilidade para captar recursos para suas pesquisas e podem orientar alunos. Dessa forma, conseguem nuclear grupos de pesquisa e contribuir para implantar novos cursos de pós-graduação, levando adiante o DNA da Biologia Parasitária”, completa o pesquisador.
O programa vem aprofundando o processo de internacionalização, com a oferta de cursos internacionais e o intercâmbio de discentes e docentes. No final de 2021, foi realizada a primeira defesa na modalidade de cotutela internacional. A estudante Camila Cardoso Santos desenvolveu sua tese de doutorado no Programa de Biologia Parasitária do IOC e no curso de Ciências Biomédicas da Universidade da Antuérpia, na Bélgica, garantindo a dupla titulação.
A modalidade também tem atraído alunos estrangeiros para o Programa. Um aluno belga e uma aluna francesa já cursaram disciplinas e desenvolveram parte de seus projetos no IOC, de forma a obter a titulação simultânea na Biologia Parasitária e em programas de pós-graduação dos seus países.
Camila (à esquerda) defendeu sua tese de doutorado on-line com a presença dos orientadores Maria de Nazaré Correia Soeiro, chefe do Laboratório de Biologia Celular do IOC, Guy Caljon e Louis Maes, ambos da Universidade da Antuérpia. Foto: Reprodução
Segundo André, mesmo com a volta ao presencial, a seleção para o doutorado foi mantida em formato online, com edital publicado em três idiomas.
“Recebemos frequentemente estudantes latino-americanos e asiáticos. No ano passado, também tivemos o ingresso de um aluno dos Estados Unidos e outro da Espanha. A presença de estudantes de países considerados como centros de excelência mostra o reconhecimento internacional do curso”, aponta o coordenador.
Da hanseníase à Covid-19 e da dengue à leishmaniose, os alunos formados na Biologia Parasitária podem contribuir para o enfrentamento de agravos com alto impacto na saúde pública, através da pesquisa, docência ou do exercício profissional nas áreas da ciência, tecnologia e saúde.
“Além de uma formação qualificada, esperamos que os nossos alunos enxerguem sua responsabilidade social na aplicação dos conhecimentos, considerando o quanto nosso país investiu neles”, ressalta André.